Gustavo Jaccottet
O latido do vira-latas
Por Gustavo Jaccottet
Advogado
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Fiquei pensando no que escrever depois de uma derrota tão imprevisível, dolorida e que teve uma demonstração de que a versatilidade é necessária. Não adianta culpar apenas o Tite. A imprensa esportiva pedia pelo seu nome. Ela tem a sua parcela de culpa.
A Croácia é daquelas equipes que consegue ter algo que ainda é raro, talvez em extinção, o “craque sem idade”. Nelson Rodrigues, em crônica publicada em 3/12/1955, explicou algo que o torcedor não é capaz de entender (e a mesma lição vale a Tite e ao treinador de Portugal). Há a figura do bom jogador, daquele que traz plasticidade e elegância ao campo, porém há o craque. Estes, queridos leitores, jamais morrem e tampouco envelhecem. Disse Nelson “que o tempo é uma convenção que não existe para o craque, nem para a mulher bonita. Existe para o perna-de-pau e para o bucho. Na intimidade da alcova, ninguém se lembraria de pedir à rainha de Sabá, a Cleópatra, uma certidão de nascimento. Do mesmo modo, que importa a nós tenha Zizinho 17 ou 300 anos, se ele decide as partidas? Se a bola o reconhece e o prefere? No jogo Brasil x Paraguai, ele ganhou a partida antes de aparecer, antes de molhar a camisa, pelo alto-falante, no intervalo. Em último caso, poderá jogar, de casa, pelo telefone”.
A definição dada à imponência de quem a bola é apaixonada se aplica a Modric. Vimos trocar passes no meio de campo como um enfadonho tiki-taka. Descansavam jogando, pela relação de amor entre a bola e Modric, um cidadão de um metro e meio e que se chegasse a uma categoria de base jamais seria aceito por não ter altura, físico e simpatia nas redes sociais. Porém, como deve ser, quem escolhe o bom jogador é a bola, não o treinador. O carinho com que Neymar fez o primeiro gol foi digno de emoldurar, não fosse o treinador mandar o time ao ataque, não à retranca. Há momentos em que o craque manda no campo e no banco. O treinador apenas assiste. O escrete optou por ouvir as palavras de Adenor e avançou e numa bola bandida que tirou a fé dos brasileiros, por mais quatro anos, no seu esporte mais amado. Dói-me a estatística de que o jogo terminou empatado, não foi computado como derrota. Algo tão miúdo como um gol no final de uma prorrogação sacou-nos a sexta estrela.
Atraiçoados pela soberba em tirar Vini Jr. de campo, por não ouvir as ordens de Neymar, a quem a bola procura e olha para os seus pés como um casal que se resvala no elevador e eis à primeira vista, depois convertida em amor, Tite optou por agir como um vira-latas.
Não joguem a culpa em Rodrygo ou Marquinhos. Este bateu um dos pênaltis na decisão da Medalha de Ouro em 2016, título que perseguíamos há décadas, porém o Sr. Adenor deixou a Modric o papel de impor uma preponderância espiritual e de tal modo arremato com o adágio de Nelson: “o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.”
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